A Junta Comercial e a Evolução da Economia Gaúcha
A história da Junta Comercial confunde-se com a história do Rio Grande do Sul, seu crescimento, pujança e percalços. Sua criação, em 1877 a consolida como uma das primeiras do país, assim como a sua importância econômica para o nosso Estado que já alcançara no contexto do império, como da própria fase próspera pela qual a província vinha passando desde o final da Guerra dos Farrapos. A necessidade de reconstrução do que a prolongada revolta havia desestruturado e a forma do pacto com o governo imperial contribuíram para que as atividades econômicas tivessem um crescimento significativo. Além disso, há que mencionar a posição geográfica do Estado, próxima ao Prata e a delicada posição diplomática em que o império se encontrava. O Brasil havia participado de conflitos no Prata, além da Guerra do Paraguai, atestando que sua importância era bem mais que econômica, mas militar. Neste período, o charque gaúcho consegue preços compensadores no mercado nacional. Revoluções e guerras nos países platinos significavam aumentar o poder de barganha local por protecionismo aos produtos da pecuária rio-grandense, quando não simplesmente desestruturavam as economias concorrentes.
Cresce a província e também a sua capital e comércio. Porto Alegre é a quarta cidade do Império em população, com cerca de 14 mil habitantes na metade de século XIX, um terço dos quais escravos. A imigração alemã, iniciada em 1924, começava a mostrar seus primeiros frutos após anos de trabalho árduo – e ao lado da economia pecuária do Sul, baseada na grande propriedade, começava a surgir outra, mais diversificada, com base em pequenas propriedades e no trabalho familiar do colono. A navegação pela Lagoa dos Patos aumenta consideravelmente, sendo Porto Alegre o escoadouro desta produção. Surgem as primeiras firmas de comércio, fundadas por alemães, que vão substituir os antigos nomes açorianos e portugueses: Fraeb, Huck, Gehardt, Albrecht, Renner, Bier e Bromberg.
Muitos destes sobrenomes servirão para identificar mais tarde produtos industriais. A economia do Norte começava a contrastar com a do Sul por, inicialmente, possibilitar um comércio mais intenso, amplo e diversificado. Este começava por bens in natura, indo em direção à produção de manufaturados como derivados do fumo, vinho, banha, etc. O comércio torna-se relevante e as empresas tratam não apenas de abastecer o mercado local, como também realizar operações de importação e exportação.
Inicia-se o beneficiamento das matérias primas coloniais, matriz da indústria gaúcha: além do capital, conhecem seus proprietários o mercado, possuem contratos de compra e venda com intermediários de outras praças, alguns, ainda com laços na Alemanha, têm possibilidade de importar máquinas e aprender novas técnicas de produção. Conhecedores do segredo do negócio, os imigrantes tornam-se empreendedores. Constata-se que as principais casas comerciais fundadas por imigrantes eram voltadas para a importação. Contava-se 42 casas de comércio de importação nas maiores cidades gaúchas em 1858 e 74 em 1890.
Este comércio exterior possibilitou à economia colonial um dinamismo que, aos poucos contrastaria com a relativa estagnação da pecuária do Sul, centrada em poucos produtos e com dificuldades de enfrentar o produto uruguaio ou argentino. Os bens, de baixo valor agregado, possuíam baixo multiplicador de renda e não imprimiam ao mercado de trabalho qualquer dinamismo: ainda predominavam o peão e o agregado nas estâncias, e nas charqueadas dominava o trabalho escravo. Por suas próprias características, a atividade criatória extensiva inibia a utilização da terra para novas culturas, bem como a formação de um mercado consumidor ampliado, pela pouca mão de obra necessária para as tarefas campeiras.
De sua criação até o final do império, foram registradas 668 firmas, numa média de 53 firmas por ano, número expressivo, mas muito inferior aos do primeiros anos da República. Com a Proclamação, o governo Provisório passou a adotar uma política monetária mais frouxa, entendendo a crise por que passava a economia como resultante da economia monetária ortodoxa, centrada no controle do meio circulante. Tal escassez ganhava maior vulto com a abolição de escravos, que forçava maior modelização da economia, e uma seca no nordeste agravara ainda mais o quadro.
O momento político não era de contenção, a elevação abrupta da oferta monetária fez cair à taxa de juros, favorecendo a expansão de crédito e proliferaram companhias por ações. Tudo conspirava na direção do que o comércio mais aprecia: consumo em elevação com boas possibilidades para investimento. Este período, conhecido como Encalhamento, duraria até 1898, quando Campos Sales, pressionado pela inflação e pela dívida externa crescente, implementa uma política austera. Neste período a média foi de 145 registros ao ano.
A política de Campos Sales aumentou significativamente as solicitações de falência. A valorização do mil-réis prejudicou o comércio importador e, com isso o comércio interno, francamente dependente de importados.
O ano de 1900 marca a retomada do crescimento do registro de novas firmas, mas isto deve ser atribuído menos à recuperação econômica – que só começaria por volta de 1903 e mais à campanha da Junta para que os comerciantes legalizassem sua situação. Neste ano chegou-se ao recorde de 494 registros. Após 1903, o crescimento de registros vai crescendo gradualmente.
Continuando com a política antirecessiva do presidente anterior, Rodrigo Alves, o presidente Afonso Pena adota a postura de viajar pelo Brasil para melhor conhecê-lo. Na viagem ao Estado, é recepcionado pelas autoridades, que negam aos estudantes a possibilidade de manifestarem-se oficialmente ao visitante. Estes, então, resolvem fazer uma manifestação de apoio a Afonso Pena, escolhendo o jovem acadêmico de direito para falar em nome dos estudantes: Getúlio Vargas. Adiantando sua vivacidade política, este evitou qualquer crítica direta ao Governador Borges de Medeiros, seu companheiro de partido. Em seu discurso, defendia a industrialização do país. "Quantas causas de estagnação pesam sobre um país novo, exaurido pela captação e pelo fisco. Sopeando o livre desenvolvimento das atividades industriais! Amarga resultante para quem se vê coato a comprar, manufaturados do estrangeiro, os gêneros da própria matéria-prima que exporta”.
O discurso afastava-se das ideias defendidas pelos importadores, pois prenunciava o projeto de industrialização pela via da substituição de importações. Tal confronto seria mais grave não fosse o fato de que muitos importadores locais, e especialmente os mais fortes, também terem negócios que se expandiam às atividades industriais. Além disso, a crítica aos altos impostos era sempre bem-vinda, sem contar que Vargas adotava a mesma ideologia assumida pelo governo e por boa parte dos líderes mais destacados do comércio: o positivismo. Doutrina sistematizada na França por Augusto Conte, o positivismo conquistou boa parte da elite gaúcha desde o final do Império e foi adotado oficialmente pelo Partido Republicano Rio-Grandense – PRP. Defendendo uma moderada intervenção do Estado em favor das atividades produtivas, afastava-se do liberalismo clássico, mais centrado na defesa do mercado, defendia um governo comprometido com o progresso, mas sempre respaldado na ordem, firmando um ethos que se poderia denominar de conservador-progressista, cujo lema era “conservar melhorando”.
Não havia unanimidade do comércio, todavia, em torno destas ideias adotadas pelo governo gaúcho. Muitas vezes, aparecia a crítica governamental aos comerciantes, vistos como oposicionistas. Na verdade divididos entre chimangos, a situação e maragatos, denominação genérica da oposição após a Revolução Federalista de 1893, sensibilizava parte do grande comércio da capital o discurso liberal dos oposicionistas, denunciando os altos impostos e associando a crise da economia estadual ao fraco desempenho da pecuária e das charqueadas – tidas como “vocação” do Rio Grande. Para outros, entretanto, o governo agia corretamente ao abrir estradas, linha férreas, linhas de telégrafos, etc.
Novos produtos começam a ser produzidos. Os bens derivados da pecuária, que perfaziam 75% das exportações gaúchas em 1861, têm sua participação reduzida para 55% logo após a proclamação da república e para 25% ao final da década de 1920. Caem, portanto de três quartos para um quarto do valor total das exportações em pouco mais de cinco décadas. A participação do charque nas exportações reduz-se pela metade entre 1890 e 1928. Trata-se, portanto, de uma crise estrutural; e esta coincide com a forte expansão da região colonial. O comércio gaúcho beneficia-se com a exportação de produtos locais principalmente para outros centros do país, firmando o Rio Grande do Sul como um dos poucos casos bem sucedidos de economia diversificada e voltada para o mercado interno, em contraposição à hegemônica, a do café, especializada e dependente do mercado internacional.
Em 1912 o estado tomou a si a responsabilidade do porto de Porto Alegre e, mais tarde, das linhas férreas. Era a política de “socialização dos serviços públicos” adotado pelo governo. Reclamavam os comerciantes dos altos preços cobrados pelos seus proprietários. Entendendo o problema como social, justificava-se a encampação dentro do ideário positivista. Desta forma, o governo antecipava uma postura não comum à época: a intervenção estatal com objetivo desenvolvimentista.
Certamente a imigração e esta postura do governo foram decisivas para que, neste período, o Estado ficasse conhecido como o “celeiro do Brasil”. Em 1920 ele aparece como o primeiro produtor de lã, batata inglesa, cera, manteiga, trigo, mel, vinho; o segundo produtor de farinha de mandioca, fumo e o terceiro em arroz, feijão, erva-mate, milho e polvilho. Destacava-se também a cevada, alfafa, uvas, aguardentes, banha, toucinho, etc. O comércio deixava de ser local e já aparece uma linha divisória entre o grande comércio importador e o exportador, que enriquece rapidamente, empreende, diversifica suas atividades e o pequeno comércio dos bairros e das cidades menores, onde as encomendas são feitas a viajantes, representantes de indústrias e de firmas comerciais das cidades menores.
A crise de 29 manifesta-se no comércio varejista, mas é lícito supor, até que haja estudos mais conclusivos, que seu impacto foi muito maior nos estados exportadores, como São Paulo. A política do governo federal, já com - Vargas à frente – direcionava-se no sentido de manter o nível de renda nacional, intervindo no mercado cambial e, através de política fiscal, na oferta de café. Somava-se a esta intervenção uma política monetária e creditícia razoavelmente frouxa, salutar num momento de deflação e queda de consumo. O resultado foi uma queda no nível de atividade econômica muito menor do que teria sido na ausência de tal intervencionismo.
Se analisarmos os dados de extinção de empresas na Junta Comercial no período que vai da década de 1920 até o final da Segunda Guerra Mundial, verificamos que a crise de 29 não foi significativa para explicar a extinção de empresas comerciais. Ao contrário, o período do final da década de 1920 apresenta números mais significativos, com o de maior expressão em 1927: 287 registros de extinção. Este patamar cai significativamente na década de 1930, chegando a 163 em 1933, e aprofunda-se durante os primeiros anos da década de 1940, quando alcança pouco mais de 150 casos.
A crise manifesta-se, não obstante, na queda de novos registros. Quanto a estes, cabe ressaltar que os anos 20 representam um apogeu; apenas entre 1920 e 1921 o crescimento de novos registros de firmas comerciais foi superior a 100%, saltando de 498 para 1.066. Com a crise internacional, o número médio de novos registros na década de 30 reduz-se pela metade, ao comparar-se com os anos 20. No ano de 1930 só houve 351 registros, sendo que o número mais baixo da década verificou-se em 1932: 297. Nota-se que este era um patamar do início do século, e que a última vez que encontrara paralelo fora durante alguns anos da Primeira Guerra Mundial.
Mas a recuperação econômica que teve lugar na década de 30 trouxe consigo mudanças substanciais na economia brasileira; a industrialização substituía a agroexportação de café e outros produtos primários como principal determinante de nível de renda e de empregos nacionais. O país vai gradualmente deixando de ser agrário para tornar-se urbano. Entre 1920 e1940 a produção industrial quadruplicou sendo que setores tradicionais, como metalurgia e produtos químicos despontaram com força, ao lado de alimentos, tecidos e derivados do couro.
A exposição de 1935, feita para comemorar o centenário da Revolução Farroupilha, exibiu a diversificação da indústria local, ajudando a ilustrar suas características estruturais: centrada em empresas de pequeno e médio porte, com relativa força no interior e centrada em três pólos, Porto Alegre, Rio Grande – Pelotas e região serrana, esta com amplo crescimento. As atividades comerciais acompanham esta diversificação, e altera-se o perfil do comércio importador e exportador, pois gradualmente importam-se menos bens de consumo, cuja demanda passa a ser atendida cada vez mais pela produção nacional.
Assim, antigas firmas voltadas a abastecer o mercado local com produtos importados, partem para a produção de bens antes importados; e outras direcionam seus negócios para artigos mais sofisticados, de demanda mais reprimida (automóveis, geladeiras) ou, ainda, bens de capital. As grandes empresas comerciais vão se firmando na capital do estado; mas isto sem necessariamente destruir o pequeno comércio local. Ao contrário, constata-se a existência de redes de comércio que, a partir da liderança de empresas maiores, os “atacados”, relacionam-se através de viajantes e representantes com o comércio do interior. Porto Alegre firma-se definitivamente centro comercial, cultural, industrial e de serviços, e a metade norte do estado ultrapassa em pujança econômica, política e social a antiga região que o imaginário associou ao gaúcho: a Campanha e as cidades fronteiriças, onde se firmara a nacionalidade e se buscara uma identidade regional, com os campos e o gado, o fazendeiro e o peão, o índio e o colonizador ibérico. Nos anos 50 e principalmente a partir de 55, com JK, o Brasil passa a receber fortes investimentos de grandes empresas internacionais. Os bens sofisticados antes atendidos pelo comércio importador passam a ser produzidos dentro do país, com mercado assegurado por protecionismo. A era das importadoras começa chegar ao fim. As frequentes crises do balanço de pagamentos levava os sucessivos governos a buscarem acelerar a substituição das importações. Em 53, a Instrução 70 da Superintendência da Moeda e do Crédito – SUMOC, frente à ameaça de um colapso cambial, abandona o regime de taxa fixa de câmbio, vigente desde a Segunda Guerra, e adota o de taxas múltiplas, encarecendo as importações de acordo com a essencialidade do bem. Em um primeiro momento, o comércio importador e exportador respira um certo alívio, pois era preferível pagar mais caro, mas manter o negócio, a continuar com uma taxa de câmbio fixa mas com deficits comerciais crescentes, e cujas importações dependiam de licenciamentos cada vez mais difíceis de serem obtidos.
A perspectiva otimista inicial não tardou a ser substituída pelo desânimo. Inicialmente porque a crise cambial agravava-se, bem como a instabilidade política; o comércio importador/exportador, através de suas lideranças, alinha-se em oposição ao governo Vargas, culpando a industrialização acelerada pela inflação e o fechamento da economia e o intervencionismo pela crise cambial. Mais adiante, porque a opção de JK, embora diferente da de Vargas, não significava abandonar as linhas gerais da substituição de importações, antes, em muitos aspectos, intensificá-la. Certamente apostava em maior abertura e no ingresso de capital estrangeiro, na grande empresa de bens duráveis, eletroeletrônica e automobilística, portanto diferindo do padrão verificado até então. Definitivamente afastava-se a possibilidade de importação dos bens agora produzidos internamente. A abertura da economia ao capital estrangeiro significava, de fato, a abertura para investimentos industriais; para o comerciante importador, fechamento e, no limite, a inviabilidade do negócio.
A partir daí, e ao longo das décadas de 60 e 70, o comércio moderniza-se cada vez mais. De outro lado, as firmas estritamente individuais cedem espaços para outros tipos de pessoas jurídicas: sociedades limitadas, sociedades anônimas e cooperativas. Estas começam a aparecer já nas primeiras décadas do século, com o apoio do governo, que aconselhava a união dos produtores na defesa de interesses comuns e principalmente da concorrência desleal de firmas clandestinas, ou que não seguiam determinados padrões de qualidade. Entretanto, a partir de 67, com o chamado “Milagre Brasileiro”, as cooperativas tornam-se as principais empresas em muitas cidades do interior. A introdução do binômio trigo-soja, com as condições internacionais favoráveis e sob o forte subsídio ao crédito agrícola, propiciou grande crescimento do comércio interior; as próprias cooperativas criam centrais de abastecimentos e até lojas de departamentos para atender a seus negócios.
Além disso, este período marca a diversificação cada vez maior dos bens à disposição dos consumidores. As grandes redes vão abrindo filiais pelo interior, a figura do viajante vai ficando cada vez mais rara. A diminuição da barreira dos transportes, com novas estradas asfaltadas, a telefonia, e mais tarde o fax e o computador, contribuíram para o encurtamento de distâncias.
Finalmente, a abertura econômica de 1990 contribuiu para que a expansão do comércio tivesse continuidade. A desregulamentação da economia e as mudanças no mercado de trabalho, inclusive com o crescimento do desemprego no setor formal, passaram a incentivar a abertura de novas firmas; o comércio certamente é desaguadouro para aquela mão de obra excedente que busca alternativa ao assalariamento. Assim, constata-se que as solicitações de registro não caem de acordo com o ciclo econômico – não se aprofundam com o desemprego e com a recessão do início da década de 90, como se poderia esperar, antes, possuem com estes uma correlação positiva.
A Junta Comercial, neste contexto, passa a registrar em um ano o mesmo número de empresas que antes levava mais de uma década. Nos primeiros anos da década de 70, o número anual de registros ficava em torno de 15.000, em 79, ultrapassou pela primeira vez a barreira dos 20.000 e seis anos depois, em 85, já superava os 30.000. No ano seguinte, com o Plano Cruzado e o forte crescimento das vendas, houve um recorde de 52.885 registros, número que vai ser superado já no início da década de 1990, quando em 91 alcançou-se o patamar até hoje não superado de 62.412 processos aprovados. Como entre 1877 e 1951 foram registradas aproximadamente 60 mil empresas, pode-se dizer que em 1991 houve o mesmo número de registros registrados nos 75 primeiros anos da Junta Comercial.
Certamente este só pode ser assegurado, mantendo-se o mesmo padrão de qualidade das décadas anteriores, através de forte programa de informatização – o qual, por seu turno, passa a exigir um novo perfil de seus recursos humanos. Em um balanço deste trabalho desde sua criação, estima-se que a Junta Comercial, de 1887 a 1997, tenha registrado em torno de 1 milhão e 400 mil empresas.